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O espaço do espelho

Bárbara Santos. Maio de 2010

Com alguma frequência, os territórios exclusivos para mulheres estão ligados ao trabalho e à obrigação de se preparar ou de se manter “apresentável”, “desejável” e “aceitável”, segundo padrões sociais. Tradicionalmente, mulheres se reunem nas cozinhas para o preparo da comida dos encontros familiares; nos salões de beleza para responder a expectativas e exigências; nas praças para cuidar das crianças enquanto brincam; nas beiras dos rios para a lavagem de roupa; nas cerimônias pré-nupciais ou nas que marcam a puberdade e em outros encontros similares, dependendo da classe social a que pertencem e da região do planeta onde vivem.
Nesses espaços, podem falar de suas especificidades e ratificar a cultura do “coisas de mulher”. Apesar desses encontros possibilitarem a troca de idéias sobre aflições e insatisfações, não necessariamente, se transformam em territórios de constestação, muito pelo contrário, com freqüência, ratificam costumes e opressões.
Nos salões de beleza, se preparam para uma concorrência forjada socialmente. Na cozinha, apesar de reclamarem da falta de apoio dos maridos, as mulheres introduzem suas filhas e não seus filhos às artes culinárias. Para muitas, a cozinha é uma espécie de espaço sagrado, território livre de homens, podendo tanto representar saber, criatividade e talento, quanto se transformar em prisão.
Nas praças, cuidando das crianças, mulheres reclamam da sobrecarga de trabalho em relação aos filhos e da falta de divisão de tarefas no casal, mas se precisam fazer outras atividades delegam a outra mulher a função de cuidar dos filhos. O mesmo farão em relação às roupas e aos demais afazeres dométicos, se não houver recursos econômicos para a introdução de eletrodomésticos ou de empregadas, as tarefas serão herdadas por outras mulheres. Em Guiné-Bissau, quando perguntadas como negociavam com os maridos o período de ausência do lar para a formação em Teatro do Oprimido, as participantes casadas responderam que as filhas mais velhas assumem as tarefas domésticas em sua ausência.
No Sudão, um multiplicador do Teatro do Oprimido relatou que não queria que sua filha passasse pela excisão ou circuncisão feminina – a mutilação da genital feminina, ou seja, amputação do clitóris e, em alguns casos, também dos lábios vaginais – feita em cerimônia tradicional. Segundo ele, sua própria mãe levou a menina para a cerimônia, apreveitando-se de sua ausência de casa. São as mulheres mais velhas que asseguram a continuidade desta tradição.
Em Guiné-Bissau, participamos da “cerimônia de paridas”, ritual entre profano e sagrada permitido apenas para mulheres-mães. O convite foi uma honraria excepcional, demonstração de confiança e admiração. Por um lado, o ritual ratifica o poder da maternidade, por outro, exclui mulheres que não podem ter filhos, não apenas da cerimônia em si, mas, em muitas Tabancas (aldeias tradicionais), da própria comunidade.
Esses espaços exclusivos para mulheres são espaços de contradição. Por um lado, ratificam opressões, mas, por outro, são também territórios-fêmea. Nesses espaços concretos com tempo determinado, criam-se territórios sócio-culturais de “autonomia” momentânea que funcionam também como armadilhas para a ratificação e a “naturalização” de opressões.
Mesmo que ao longo do último século seja inegável o avanço das mulheres na criação de territórios de contestação e luta, graças aos quais se tem garantido a conquista de direitos e a ampliação da participação nas instâncias de poder. Ainda assim, no mundo inteiro, milhares de mulheres continuam vítimas de violência doméstica e social, física e emocional, e, muitas vezes, ainda carregam a vergonha e a culpa por suas trajédias. O que, por um lado, as inibe de compartilhar suas histórias e de buscar alternativas e, por outro, as isola e impulsiona à repetição de comportamentos indesejáveis. Mais que isso, dificulta a percepção de o que se passa com cada uma delas, não é nem particular nem natural.
E por que seguimos repetindo comportamentos indesejáveis? Por que dizemos sim quando o desejo, a experiência e a lógica nos aconselham ao não? Por que atuamos reforçando o padrão quando ele já não nos interessa? Porque na vida cotidiana acabamos por reforçar a “naturalização” ou “feminilização” de determinadas funções sociais? Porque as imagens coladas em nosso inconsciente continuam se refletindo e se reforçando em nossa atuação social?
Muitas coisas só podemos confessar para nós mesmas diante do espelho. A questão levantada pelo Laboratório Madalena – experiência cênica inovadora baseada nas técnicas do Teatro do Oprimido que investiga as especificidades da opressão contra a mulher – é: Seria possível uma mulher ser o espelho da outra? Olhando nos olhos de outras mulheres podemos ver nossos próprios olhares, entendendo o que querem dizer para aí podermos nos entender?
No percurso do Madalena, bucamos criar espaços de investigação e partilha, onde a vergonha, a culpa e a concorrência sejam desconstruídas – afetiva, estética e historicamente – e a confiança se estabeleça e permita abertura até para confissões. Por isso, a importância de um ambiente composto apenas por mulheres, para a recriação de um território do poder-fêmea, onde tanto fraquezas, inseguranças, erros e medos, quanto potencialidades, sonhos e descobertas sejam compartilhados.
A experiência tem demostrado a eficácia da estratégia. Uma parte muito expressiva das participantes relata que se sente encorajada a contar suas histórias quando percebem que estas são quase como ecos das histórias de outras mulheres. Isso cria um processo potente e impressionante de identificação: na escuta de suas próprias palavras na voz da outra, na percepção de si na declaração de identidade da outra, na auto-imagem na pintura alheia e no re-encontro do sonho esquecido no poema da outra. Aproximação que facilita a compreensão coletiva das complexidades emocionais e dos contextos sociais que englobam e reforçam essas opressões e também fortalece para o enfrentamento dos desafios colocados.
Para além de cada grupo particular em cada laboratório desenvolvido, destaca-se a força da identificação entre as participantes das distintas experiências. No nordeste e no sudeste do Brasil, em Guiné-Bissau e Moçambique, mesmo separadas por abismos sociais, culturais, religiosos e econômicos, as opressões também aparecem como ecos umas das outras.
A criação de territórios-fêmea propiciou o contato com algo de ancestral que nos ajudou a abrir portas cerradas de uma identidade obscurecida e sufucada pela imposição de modelos autoritários e inflexíveis. Um espaço de tempo com liberdade para nos vermos (eu-nós) e investigarmos imagens, contradições e concessões. Espaço de compreensão e, ao mesmo tempo de crítica, onde nos despimos das vítimas e nos assumimos oprimidas em busca de transformação.

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